Poesia Guatemalteca em Português

A poesia guatemalteca é quase completamente desconhecida do público brasileiro. É possível que apenas uns poucos conheçam uns poucos poemas de Miguel Ángel Asturias... Contudo, a Guatemala produz uma literatura ganhadora de um Prêmio Nobel (Miguel Ángel Asturias, 1967)!!! Conhecê-la é conhecer uma das faces mais coloridas, vivas e verdadeiras da literatura latino-americana.

Thursday, March 24, 2005

O cachorro, Victor Montejo




Muito perto do destacamento militar
um cachorro vira-lata foi morto.
Era um cachorro magro, pulguento,
que os chefes militares pensaram
ser algum jovem guerrilheiro
que passava orinando-lhes as tendas
transformado em cachorro desafiante.

É a crença, diz a gente,
que os soldados matam os perros
porque garantem que os guerrilheiros
com sua habilidade sabem converter-se
em paus, em pedras, em cachorros;
por isso quase nunca caem em combate
os guerilheiros na montanha.

Pobres cachorros intranqüilos
que sofrem igual a seus donos,
uma tortilha ou duas ao dia é tudo que comem,
e são espancados se invadem cozinhas fartas
seduzidos pela fome.
Nunca comem carne, nem em sonhos!
como os gordos cachorros estrangeiros.

Triste cachorro abatido a tiros,
Não era um alto chefe guerrilheiro;
Era simplesmente um cachorro,
um cachorro vira-lata
dos muitos que transitam no povoado
e que sem más intenções
param, levantam a pata e orinam
nos quartéis de assustados coronéis.

Víctor Dioncio Montejo 1951-..., poeta guatemalteco.
Tradução de André Damázio

Original

Diálogo onde me sincero, Luis Alfredo Arango

Ontem à noite falei com Homero e lhe disse:
Olhe senhor
- Já notou que tragédia?
Não há Ulisses que valha porque
não sabemos grego,
não podemos deleitar-nos
traduzindo seus hexâmetros.
Mas isso não é nada:
- Nem sequer podemos entender
o Rei Pascoal de Olintepeque*!
Somos órfãos de pai e mãe;
nascemos nesta terra tão linda e
talvez aqui morreremos,
sem ser greco-latinos, nem quichés**,
nem gachupins***...
- Que tragédia Senhor Homero!


Luis Alfredo Arango (1935 -2001)
Tradução de André Damázio

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* Rei Pascoal de Olintepeque, imagem da devoção popular guatemalteca. Informações aqui.
** Quiché, nome de uma nação indígena guatemalteco de origem maia.
*** Gachupim, aportuguesamento de gachupín, do náhuatl cactzopin, o que pica com sapatos, referência às esporas dos sapatos dos colonizadores espanhós. Palavra que se usa para referir-se aos espanhóis. Entenda melhor seu significado.

Epístola irreverente a Jesus Cristo (I), Romelia Alarcón Folgar



Cristo,

Desce já de tua cruz e lava tuas mãos,
lava teus joelhos e teu costado,
penteia teus cabelos,
calça tuas sandálias
e confunde teus passos
com todos os passos que te buscam
pelas cordilherias e o mar;
pelas comarcas;
pelo ar,
pelas cercas dos caminhos.

Tu solucionas qualquer coisa,
para ti tudo é fácil
e então
- que esperas?
Por que não desces de tua cruz agora mesmo?
Sim parábolas, com balas
e soltos arrecifes vingativos
nas mãos...

E se encham as vilas de homens libertados
e sol de meio-dia,
hortos, pombas e rosas
de corolas intactas
e clarins anunciem
pacíficas manhãs.

Cristo,
Desce de tua cruz
onde milhares de homens contigo
estão crucificados:
lava tuas mãos e suas mãos,
teus joelhos e seus joelhos,
teu costado e o costado deles;
lava tua fronte e a fronte deles
coroada de espinhos.

Que não prossiga teu martírio imóvel:
mostra tua ira,
desce já da cruz,
mistura-te aos homens que te amam.

Original

Ananké*, Rafael Arévalo Martínez




Quando cheguei à parte em que o caminho
se dividia em dois, a sombra veio
a dobrar o horror de minha agonia.

Ó Hora dos destinos! Quando chegas
é inútil lutar. E eu sentia
que me socilitavam forças cegas.

Desde o cume em que disforme lava
escondia a fronte de granito,
minha vida como um pêndulo oscilava
co'a fatalidade dum "está escrito".

Um passo nada mais e definia
pra mim a existência ou a agonia,
pra mim a razão ou o desatino...
Dei aquele passo e se cumpriu um destino.

(de "Los Atormentados", 1914)
Rafael Arévalo Martínez, poeta guatemalteco,
da Geração de 1910, também chamada Geração do Cometa.

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* Ananké, na mitologia grega, era a personificação da
inevitabilidade, da necessidade e da compulsão. Na
mitologia romana era Necessitas.

Original

Ela o disse em um poema, Miguel Ángel Asturias




Vai passando esta pena,
a pena da vida,
a pena que não importa,
tu a sentiste longa,
eu a senti curta
e ainda está distante
a terra prometida.

A nosso passo errante
fatal é todo empenho,
toda esperança é morta,
toda ilusão falida.

Eu guardarei teu nombre,
eu velarei teu sonho,
eu esperarei contigo os primeiros alvores,
eu enxugarei teu pranto quando comigo chores,
e quando já não queiras que caminhe contigo
deixa-me abandonada com um grão de trigo
sobre as sementeiras
Deixa-me pra sempre quando já não me queiras!

Poema de Miguel Ángel Asturias, poeta guatemalteco,
agraciado pelo Prêmio Nobel de Literatura de 1967.
Tradução de André Damázio.

Original

Roguemos que amanhã, Rafael Gutierrez




Não há remédio, companheira.

Neste país
até as formigas confabulam contra a alegria.

Roguemos que amanhã
chovam sobre nós
bestas de amnésia
para ficar, agora sim, soterrados todos
sob
uma
avalanche
de
bruma

da qual nunca, oh efêmeros, devemos ter saído.

Poeta Guatemalteco (1958-...)
Tradução de André Damázio

Original

Credo, Miguel Ángel Asturias




Creio na Liberdade, Mãe da América,
criadora de mares doces na terra,
e em Bolivar, seu filho, Senhor Nosso
que nasceu em Venezuela, padeceu
sob o poder espanhol, foi combatido,
sentiu-se morto sobre o Chimborazo,
ressucitou à voz da Colombia,
tocou o Eterno com suas mãos
e está em pé junto de Deus!

Não nos julgues, Bolivar, antes do dia último,
porque cremos na comunhão dos homens
que comungam com o povo, só o povo
faz livres aos homens, proclamamos
guerra a morte e sem perdão aos tiranos
cremos na ressurreição dos heróis
e na vida perdurável dos que como Tu,
Libertador, não morrem, fecham os olhos e ficam velando.

Buenos Aires, 1954

Poema de Miguel Ángel Asturias, poeta guatemalteco,
agraciado pelo Prêmio Nobel de Literatura de 1967.
Tradução de André Damázio.

Original

Ele o disse em um poema, Miguel Ángel Asturias




Já quando passe o tempo em que te espero,
quando a beatitude de teus carinhos
voltes a dar-me e nos sintamos meninos
já talvez não te quero.

Si tardas muito, primavera fugiu
e a teu regresso, atrás das portas juntas,
encontrarás sentado um Velho Esquecimento
com os olhos carregados de perguntas.

(Guatemala-Paris / 1918-1928)

Poema de Miguel Ángel Asturias, poeta guatemalteco,
agraciado pelo Prêmio Nobel de Literatura de 1967.
Tradução de André Damázio.

Original